PANORAMA HISTÓRICO DA LITERATURA ANGOLANA
A história da Literatura Angolana é configurada como um processo de ruptura político-cultural contra a dependência colonial e entendida como afirmação, sobre as particularidades regionais, de um horizonte mais amplo.
Um primeiro momento de fratura do imaginário materializou-se pela presença de uma burguesia africana, fato que se deu basicamente nos últimos anos do século XX - um período liberal associado à Regeneração portuguesa - favorecendo o início de uma intensa atividade jornalística na então colônia. A imprensa desponta como a força responsável pelo surgimento de um primeiro reduto capaz de romper o silêncio imposto pela estrutura colonial. A partir desse período, sucedem-se dezenas de publicações, cujos caminhos vão desde um jornalismo polêmico, até a concretização de opções voltadas, preferencialmente, aos interesses angolanos. Muitos dos nomes mais significativos na história das ideias em Angola estão ligados a esse período de fundação e consolidação da imprensa. No campo da literatura, destacam-se dois escritores que atestam a importância desse espaço: Alfredo Trony (autor da novela Ngá Muturi) e o poeta Joaquim Cordeiro da Matta (antologia Delírios).
Aproximando-se do que havia ocorrido no Brasil, no processo de formação do sentimento nacional, logo após a Independência, define-se, na afirmação do projeto liberal da pequena-burguesia angolana, um sentimento de identificação com a terra. Elemento importante no jogo das transformações, tal sentimento já havia tido expressão literária antes, na obra Espontaneidade da Minha Alma, de José da Silva Maia Ferreira, possivelmente o primeiro volume de poesias publicado no conjunto dos países africanos de língua oficial portuguesa, e no qual despontam os sintomas daquele sentimento nacional que pontuava o romantismo nos vários quadrantes do mundo.
Esse traço romântico, centrado na incorporação da atmosfera cultural da terra, ultrapassaria o século XIX para se constituir numa das linhas de força dessa literatura. O romance O Segredo da Morta, de Assis Júnior, publicado a partir de 1929 no jornal A Vanguarda, compõe, no plano da prosa, um outro registro da maneira de ser daquela burguesia progressista que entraria em decadência no século seguinte. A presença colonial em Angola acentua-se no século XX e, com ela, a transferência do poder para os colonos metropolitanos (ascensão do fascismo, 1926). Começaria, pois, a mudar o caráter da luta contra o colonialismo. A resistência a essa situação de exploração esteve sempre na pauta da história angolana. Definia-se o caráter nacional africano como força motriz do processo. No século XX, associa-se a esse caráter o princípio da libertação social, o que se dá sobretudo a partir dos anos 1940, quando o mundo, na sequência da Segunda Guerra Mundial, enfrentava a chamada Guerra Fria. O momento exigia novas estratégias: confluem para a literatura formas discursivas da antropologia, da sociologia, da política, do jornalismo, etc. Espaço de convergência, a literatura (re)descobre o país para (re)imaginá-lo. São autores dessa época histórica: Agostinho Neto, Antônio Jacinto e Viriato da Cruz, entre outros que viriam inscrever seu nome na história das letras e da república angolas.
A essa altura, emergem no panorama cultural dois fatos que se ligam à trajetória dessa literatura: a fundação da Casa dos Estudantes do Império (CEI), em Portugal, e a eclosão do movimento "Novos Intelectuais de Angola". A ligação entre literatura e resistência ia se fortalecendo, o que se faria sentir na edição de seu boletim cultural, intitulado Mensagem, o mesmo nome de uma publicação que nos anos 1950 mudaria os rumos da literatura em Angola. As atividades da CEI ecoavam no território angolano, contribuindo para consolidar o movimento dos Novos Intelectuais de Angola.
No ano de 1948, criam-se as condições para a emergência de uma atividade literária mais abrangente. Adequando-se à necessidade de ampla divulgação dos ideais e o caráter coletivo do movimento, os Novos Intelectuais de Angola iniciam em 1951, a publicação da revista Mensagem - a voz dos naturais de Angola. Tendo sido reduzido a apenas dois números, essa revista pode ser considerada como um marco no itinerário da literatura angolana, pois, em suas páginas, reúnem-se obras e nomes altamente representativos da produção que inaugura a modernidade da poesia angolana. Sendo essencialmente de poetas, essa geração se notabilizou pela ênfase dada a uma dicção verdadeiramente angolana. Desromantizando o nacionalismo, os escritores rejeitam aquela associação mecanicista entre pátria e natureza, conferindo, aos elementos naturais, uma moldura claramente social. Com o segundo número, encerra-se a revista e o grupo se dispersa. Alguns anos depois, vários nomes dessa geração voltariam a se reunir dentro de uma organização mais ampla e aglutinada em torno de uma proposta política mais consistente: o Movimento Popular para a Libertação de Angola (MPLA), fundado em 1956.
O ano de 1957 marca o ressurgimento do jornal Cultura. Denunciando em seu editorial a ausência de um "órgão cultural" em Angola, esse veículo já deixava transparecer a amplitude do seu foco. Em seus doze números, editados ao longo de dois anos, vemos surgir, ao lado da moderna poesia fundada por Mensagem, uma prosa revigorada no contato com a sociedade angolana. Na forma de ficção e de ensaio, seus autores também percorriam as vias da angolanidade. A partir desse instante, ganham espaço nomes como: Arnaldo Santos, Costa Andrade, Ernesto Lara Filho, Henrique Abrantes, Henrique Guerra, João Abel, José Luandino Vieira, Manuel Lima e Mário Guerra, entre outros. Sem que se apague a força do poema, a narrativa começa a empreender passos mais seguros nesse mapa literário. Era natural que toda essa efervescência cultural se revelasse bastante perigosa aos olhos da metrópole, e a resposta colonial seria a de sempre: a prisão dessa intelectualidade militante. E os escritores foram para a cadeia da polícia política.
Nos duros anos 1960, é possível destacar uma linha de continuidade na prosa de ficção produzida no país, notadamente após os trabalhos literários de Castro Soromenho, escritor que começara a produzir na década de 1940. Sugestivamente, uma das suas últimas narrativas intitula-se Viagem (1957), sintomatizando uma mudança não apenas no registro da radicalização ultracolonial do governo fascista, mas também um sinal de emergência do poder simbólico da angolanidade. A imensidão da violência colonial não deixava dúvidas: era preciso intervir, de modo mais direto na história. A deflagração da luta armada aparece como uma das respostas a esse conjunto de problemas. É nesse contexto que ocorre o famoso ataque às prisões em Luanda (1961). A ousadia que seria cobrada com mais repressão, morte de milhares de angolanos e o fechamento de várias entidades culturais, agremiações que haviam se destacado na organização de pessoas e no fortalecimento do sentimento nacionalista.
Sobre o universo literário, a punição viria pela prisão e por diversas formas de perseguição que se impuseram aos escritores. Impossibilitada de se desenvolver pelas vias normais de circulação, a literatura confinou-se nos presídios, espraiou-se pelos campos da guerrilha ou se ocultou nas margens da clandestinidade. A quase totalidade dessa produção, que só foi editada como livro impresso após a Independência, em 1975, foi revelada através da chamada tradição oral, baseada no exercício da memória.
Associando a estratégia da memória com a urgência de registrar um presente que será passado, o escritor Pepetela vai redimensionar caminhos do chamado romance histórico. A crença no potencial literário de um universo sacudido por pressões históricas certamente constituíram uma das motivações na composição de Mayombe.
Contrariando as expectativas de setores da crítica, ainda comprometidos com uma visão colonialista, a literatura de Angola vai, no diálogo da História com a sociedade angolana, abrindo sempre novos e diferentes caminhos. Deste modo, pode-se explicar a vitalidade da poesia angolana que, ao lado de escritores consagrados, permanece inscrevendo novos nomes que procuram , com a verdade de experiência poética, preencher o solo de onde emerge a força de seu trabalho. Assinalando a atividade plena de poetas reconhecidos, como: Arlindo Barbeiros, Davi Mestre, Jorge Macedo e Ruy Duarte de Carvalho, podemos registrar nomes como os de Ana de Sant'Ana, E. Bonavena, Lopito Feijóo, João Maimona, João Melo, José Luiz Mendonça e Paula Tavares, para citar apenas alguns desses jovens escritores que vêm imprimindo novos sinais às malhas desse sistema literário.
Apenas a título de ilustração, apresenta-se, abaixo, um fragmento do poema Canto para Angola de Jofre Rocha, que retrata com maestria o sentimento de africanidade diante da opressão vivenciada pelo povo angolano:
Hei-de compor um dia
um canto sem lirismo
nem tristeza
digno de ti, ó minha terra.
Hei-de compor um canto
livre e sem regras
que de boca em boca vai partir
nos lábios de velhos e meninos.
Será o canto do pescador
com todos os sons do mar
com os gemidos do contratado
nas roças de São Tomé. (...)
Será o canto do povo
o canto do lavrador
e do estudante
do poeta
do operário
e do guerrilheiro
falando de toda Angola
e seus filhos generosos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CHAVES, Rita & MACÊDO, Tania. Marcas da Diferença - as literaturas africanas de língua portuguesa, Alamenda: São Paulo, 2005.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio - Século XXI. Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 1999.
GOMES, Beto. Poesia Africana de Expressão Portuguesa. Disponível em: https://betogomes.sites.uol.com.br/. Acessado em: 23 de setembro de 2010.
HERNANDEZ, Leila Leite. A África na sala de Aula - visita à história contemporânea. Selo Negro: São Paulo, 2008.
JUNIOR, Valdemar Ferreira Valente. Cultura e Literatura Africanas. Instrucional da Universidade Castelo Branco. Rio de janeiro, 2008.